Travessa

Quando era pequena, havia um almoço semanal em casa da minha avó.

O ritual era sempre o mesmo. Acordávamos Domingo de manhã, com o conforto familiar de mais um dia passado entre tios e primos, e avó. Tomávamos o pequeno-almoço e arranjávamo-nos – era o único dia da semana em que os quatro tínhamos os mesmo ritmos, os mesmo tempos. Os quatro partilhávamos a mesma rotina e eu sentia-me mais integrada, mais pertence, mais igual à minha família.

Saíamos para ir à missa. Na maioria das vezes, eu não prestava grande atenção. Mas lembro-me de que gostava de sentir que todos rezávamos o Pai Nosso ao mesmo compasso e no mesmo tom. Seguíamos para a casa que tanto nos acolhia. Uma casa que todos sentíamos um pouco nossa, em que cada um tinha a sua zona preferida e os seus segredos, partilhados entre hortas de salsa e subidas ao telhado.

Havia um momento importante, que por alguma razão sempre pautou a minha respiração destes Domingos: a altura de levar a travessa para a mesa. Era quase sempre a minha prima mais velha que tinha essa responsabilidade. Prestava atenção à viagem da travessa como se de um tesouro se tratasse, um tesouro que um dia teria o privilégio de levar.

Até que chegou o dia: o almoço era cozido à portuguesa. A travessa era grande e pediram-me que fosse eu a levá-la. Acho que ninguém sabia o significado que aquele pedido tinha, e por isso enchi-me de coragem, respirei fundo e tentei que não se notasse. A meio do caminho, os nervos pregaram-me uma partida: tropecei e caí, com o cozido a rebolar indecentemente sobre os meus sonhos de protagonismo. Fiquei aflita, mas os dois segundos de paragem para ver o que se passava desenrolaram-se numa explosão de riso da minha família, com piadas que quebravam o gelo (“este tempero de tapete vai ficar óptimo”).

Ainda hoje às vezes sinto o “peso” da travessa que me foi confiada. Agora, esta travessa viaja com mais frequência, entre as duas casas que considero minhas mas que mudam a cada dia que passa. Agora, esta travessa transporta-me a mim, ao meu crescimento, aos meus sonhos e páginas escritas da memória.

Foi bom, neste verão, conhecer melhor este tesouro que levo, voltando às raízes e olhando de outra forma, com outro distanciamento. Foi melhor ainda começar a aprender a deixar que levem a travessa comigo, a deixá-la cair, a ir retirando o peso para ficar apenas a essência.

Porque nestas quedas, o sabor do tapete dá cor e forma à nossa vida!

One thought on “Travessa

  1. Ui…
    Muitas travessas ainda vai levar para outras tantas mesas
    E a questão não está na queda, mas como nos sabemos levantar
    E como se lembra you rose above the situation

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